quarta-feira, junho 30, 2004

Mário Cesariny



NAVIO DE ESPELHOS


O navio de espelhos
não navega, cavalga

Seu mar é a floresta
que lhe serve de nível

Ao crepúsculo espelha
sol e lua nos flancos

Por isso o tempo gosta
de deitar-se com ele

Os armadores não amam
A sua rota clara

Vista do movimento
dir-se-ia que pára)

Quando chega à cidade
nenhum cais o abriga

O seu porão traz nada
nada leva à partida

Vozes e ar pesado
é tudo o que transporta

E no mastro espelhado
uma espécie de porta

Seus dez mil capitães
têm o mesmo rosto

A mesma cinta escura
o mesmo grau e posto

Quando um se revolta
há dez mil insurrectos

(Como os olhos da mosca
reflectem os objectos)

E quando um deles ala
o corpo sobre os mastros
e escruta o mar do fundo

Toda a nave cavalga
(como no espaço os astros)

Do princípio do mundo
até ao fim do mundo


Mário Cesariny
(1923)

(in A Cidade Queimada,
Assírio & Alvim, 2000)

Pode ser ouvido declamado pelo próprio Cesariny e musicado por Gabriel Gomes, Rodrigo Leão, Francisco Ribeiro e Margarida Araújo, Os poetas, no álbum "Entre nós e as palavras" (1997).